Tendência de considerar a ciência atual como definitiva
É comum na prática científica tratar as teorias e resultados mais recentes como os mais corretos ou definitivos, mesmo sabendo-se que a história da ciência é marcada por revisões constantes e mudanças de paradigmas. Diversos termos e conceitos da filosofia da ciência descrevem esse fenômeno de confiança excessiva na ciência vigente. A seguir, apresentamos alguns deles – como cientificismo, dogmatismo científico e o viés do “presente” –, explicando seu significado e relevância, com exemplos históricos e referências acadêmicas.
Cientificismo (Scientism)
Cientificismo – ou cientismo – refere-se a uma postura intelectual que confere autoridade absoluta à ciência e ao método científico como caminho único ou superior para a verdade. Trata-se de uma visão frequentemente dogmática: assume-se que o conhecimento científico atual tem primazia sobre outras formas de saber (como a filosofia ou a religião) e que suas conclusões são praticamente inquestionáveis (Cientificismo – Wikipédia, a enciclopédia livre) (Cientificismo – Wikipédia, a enciclopédia livre). Em outras palavras, o cientificismo acredita no poder da ciência de resolver todos os problemas e tende a encarar as descobertas científicas presentes como verdades finais.
“Segundo Karl Popper, o cientificismo é a crença dogmática na autoridade do método científico e nos seus resultados” (Cientificismo – Wikipédia, a enciclopédia livre).
Essa atitude pode levar a superestimar a exatidão das teorias científicas vigentes, ignorando-se que a ciência é provisória e autocorretiva. Filósofos como Susan Haack e Ian Hacking criticam o cientificismo por ele ignorar limites metodológicos e por tratar a ciência quase como uma religião secular. Em suma, o cientificismo descreve a tendência de enxergar a ciência contemporânea como detentora da verdade absoluta, deixando de lado a necessária postura crítica e falibilista (isto é, consciente de que mesmo teorias atuais podem estar erradas).
Dogmatismo científico
Por dogmatismo científico entende-se a atitude inflexível e pouco crítica diante do conhecimento científico estabelecido. Nessa postura, os cientistas (ou a comunidade em geral) aderem firmemente às teorias e paradigmas vigentes, tratando-os como se fossem verdades incontestáveis – em vez de hipóteses sujeitas a teste e possível refutação. O filósofo Thomas Kuhn observou que durante os períodos de ciência normal (ou seja, fora de momentos de revolução científica) os pesquisadores tendem a trabalhar dentro de um paradigma aceito sem questionar seus fundamentos. Kuhn chegou a chamar essa necessária estabilidade de um tipo de “dogmatismo científico” útil: os cientistas precisam de confiança no paradigma atual para resolver “quebra-cabeças” normais da pesquisa (Parcial epistemologia - NEOPOSITIVISMO: CIRCULO DE VIENA Y EL EMPIRISMO LÓGICO Hace unos treinta - Studocu). Como ele disse, “algo deve dizer ao cientista onde olhar e o que buscar, e esse algo, ainda que não perdure além de sua geração, é o paradigma que lhe proporcionou sua educação... Dado esse paradigma e a necessária confiança nele, o cientista deixa em grande medida de ser um explorador... Em vez disso, trata de articular e concretizar o conhecido” (Parcial epistemologia - NEOPOSITIVISMO: CIRCULO DE VIENA Y EL EMPIRISMO LÓGICO Hace unos treinta - Studocu).
Contudo, esse mesmo apego dogmático pode ser visto como nocivo quando impede a consideração de novas evidências ou teorias. Karl Popper, em contraposição a Kuhn, alertou que a suspensão prolongada da dúvida crítica é “um perigo para a ciência” (Dogmatism, Learning and Scientific Pratices). Para Popper e filósofos críticos, o dogmatismo científico leva os pesquisadores a ignorar anomalias ou hipóteses alternativas, retardando o progresso. Paul Feyerabend também criticou o dogmatismo da ciência institucional, defendendo um “anything goes” (vale-tudo) metodológico para evitar que regras rígidas engessem a criatividade científica. Em síntese, dogmatismo científico descreve a tendência de tratar o conhecimento atual como dogma – aceito pela autoridade da “ciência estabelecida” – em vez de mantê-lo aberto a revisão. Essa tendência faz com que frequentemente se considere a teoria mais recente como a correta simplesmente por ser a adotada no momento, até que uma eventual revolução científica a suplante.
Viés do presente (cronocentrismo e “falácia do presente”)
Outra forma de entender essa confiança nas afirmações mais recentes é através do viés do presente – a suposição de que o presente é superior ao passado em conhecimento e visão de mundo. O termo cronocentrismo descreve exatamente essa crença de que “apenas o presente conta e que o passado é irrelevante”, pressupondo que nossa época atingiu o auge da compreensão (Cronocentrismo – Wikipédia, a enciclopédia livre). Em outras palavras, julga-se que a ciência atual é naturalmente mais correta por ser a mais moderna, menosprezando as visões anteriores (às vezes chamadas de primitivas ou “superadas”). Esse viés pode levar à “falácia do presente”, isto é, ao erro de raciocínio de assumir que nossas explicações atuais são verdadeiras apenas porque estamos no tempo presente e “mais avançado”. O sociólogo Jib Fowles definiu cronocentrismo como “o egoísmo de supor que a própria geração está posicionada no auge da história” (Cronocentrismo – Wikipédia, a enciclopédia livre) – um sentimento que certamente se manifesta quando cientistas (ou o público) descartam saberes passados por considerá-los obsoletos, sem reconhecer que no futuro o mesmo pode ocorrer com as teorias de hoje.
Esse fenômeno relaciona-se também com a falácia do apelo à novidade (argumentum ad novitatem). O apelo à novidade é um tipo de falácia lógica em que se assume que uma ideia é correta ou melhor simplesmente porque é nova, enquanto ideias antigas são presumidas falsas ou inferiores apenas por serem antigas (Argumentum ad novitatem – Wikipédia, a enciclopédia livre). Por exemplo, se alguém argumenta que “a única forma correta de fazer X é usando a técnica mais recente”, está incorrendo em apelo à novidade sem analisar evidências. Nos meios científicos, esse viés aparece quando valorizamos descobertas frescas e menosprezamos resultados antigos pelo simples critério da atualidade (Argumentum ad novitatem – Wikipédia, a enciclopédia livre). Claramente, muitas vezes as teorias novas são de fato melhores que as antigas, mas a falácia está em presumir isso automaticamente. Assim, cronocentrismo e apelo à novidade descrevem o impulso de considerar as afirmações científicas mais recentes como as mais corretas pelo fato de serem recentes, esquecendo que novidade não garante veracidade.
Falibilismo e meta-indução pessimista
Em contraste com essas visões que absolutizam o presente, filósofos da ciência propõem o falibilismo – a ideia de que todo conhecimento é provisório e pode ser corrigido. Um importante argumento filosófico que explora o histórico de revisões científicas é a chamada meta-indução pessimista (ou indução pessimista). Esse argumento, associado a autores como Larry Laudan e Hilary Putnam, observa que, historicamente, mesmo teorias de grande sucesso acabaram sendo consideradas falsas ou incompletas. Com base nisso, faz-se uma indução: generalizando a partir das constantes revisões do passado, conclui-se que as teorias hoje aceitas também podem vir a ser consideradas falsas no futuro (). Em outras palavras, se ao longo da história A, B, C… (várias teorias) foram tidas como verdadeiras e depois descartadas, não há motivo para crer que a situação atual seja especial ou imune a erro ( Realism and Theory Change in Science (Stanford Encyclopedia of Philosophy) ). Como colocou Newton-Smith, “o que há de tão especial no presente?” ( Realism and Theory Change in Science (Stanford Encyclopedia of Philosophy) ) – isto é, não devemos presumir que justamente nossas teorias atuais serão as únicas absolutamente corretas.
A indução pessimista apoia-se em uma base empírica histórica: “se observarmos a evolução das teorias científicas em qualquer disciplina, é comum testemunhar a substituição regular das teorias mais antigas por aquelas mais recentes à medida que o conhecimento avança. Do ponto de vista atual, as teorias antigas são frequentemente consideradas falsas... generalizando a partir desses casos, é razoável concluir que as teorias em vigor em qualquer dado momento serão, eventualmente, substituídas e consideradas falsas... Portanto, as teorias atuais são falsas” (). Embora “falsas” aqui soe forte, a ideia é que mesmo as melhores teorias de hoje provavelmente não são a descrição definitiva da realidade, mas sim aproximações que poderão ser refinadas ou substituídas amanhã (exemplo: a física de Newton funcionava bem e foi considerada verdadeira por 200 anos, até ser englobada e corrigida pela relatividade de Einstein ( Realism and Theory Change in Science (Stanford Encyclopedia of Philosophy) )).
O reconhecimento da falibilidade do conhecimento científico é central na filosofia da ciência contemporânea. Ele nos previne contra a tentação de achar que “desta vez chegamos à verdade final”. Laudan (1981), por exemplo, apresentou uma lista influente de teorias outrora bem-sucedidas que hoje julgamos completamente equivocadas (). Entre elas: a teoria do flogisto na química do século XVIII (substituída pela teoria do oxigênio de Lavoisier), a teoria do calórico (fluido do calor) anterior à termodinâmica, o modelo do éter luminífero na física do século XIX (refutado pela teoria da relatividade e pelo eletromagnetismo de Maxwell), além de esferas cristalinas, “átomos de Bohr” originais, etc. A literatura filosófica está repleta de referências à história da ciência como um “cemitério de teorias” outrora aceitas (). Como resume Harrison (2015): “A história da ciência é um cemitério de teorias que ‘funcionaram’ mas foram substituídas” (). Esse panorama histórico embasa a visão de que nenhuma teoria científica deve ser tratada como inquestionavelmente verdadeira – um antídoto tanto ao dogmatismo quanto ao presentismo científico.
Exemplos históricos ilustrativos
Vários exemplos históricos evidenciam essa tendência da ciência de rever suas verdades e o perigo de presumir a correção absoluta das teorias correntes:
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Astronomia (Geocentrismo → Heliocentrismo) – Por mais de um milênio, o modelo geocêntrico de Ptolomeu (Terra no centro) foi considerado correto. No século XVI, Copérnico propôs o heliocentrismo, desencadeando a Revolução Copernicana (Copernican Revolution | History, Science, & Impact | Britannica). A princípio, a comunidade resistiu (afinal, o geocentrismo era a “ciência estabelecida” medieval), mas gradualmente os dados de Galileu e Kepler provaram que a visão anterior estava equivocada. Esse caso mostra como uma ideia nova e verdadeira pode enfrentar a descrença inicial de quem aposta que o conhecimento vigente já estava certo.
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Química (Flogisto → Oxigênio) – No século XVIII, os cientistas explicavam a combustão e a oxidação pela presença do flogisto, um princípio invisível liberado pelos materiais ao queimar. Essa teoria era amplamente aceita até que Antoine Lavoisier demonstrou a importância do oxigênio nas reações químicas (1780s), provando que não havia flogisto algum. Durante décadas, porém, o flogisto foi tratado como verdade científica; sua queda ilustra a revisão radical de conceitos básicos. Hoje sabemos que essa substância não existe ().
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Física (Éter luminífero → Relatividade) – No final do século XIX, assumia-se que deveria existir um meio invisível – o éter – preenchendo o espaço para permitir a propagação da luz (analogia com ondas sonoras exigindo ar). Experimentos como o de Michelson-Morley (1887) não encontraram evidência do éter, mas a ideia persistiu até Einstein, em 1905, postular que a luz não precisava de meio (teoria da relatividade restrita). A comunidade científica custou a abandonar o éter, com alguns físicos apegados à “verdade” vigente; contudo, hoje o éter é considerado uma hipótese falsa (). Novamente, o conhecimento tido como certo revelou-se transitório.
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Geologia (Fixismo continental → Deriva continental) – No início do século XX, acreditava-se que os continentes estiveram sempre fixos em suas posições atuais. Quando Alfred Wegener propôs em 1912 a deriva continental (antecessora da teoria das placas tectônicas), foi ridicularizado por grande parte da comunidade geológica. A ideia só foi aceita nos anos 1960, com evidências paleomagnéticas e oceânicas robustas. Até lá, o dogma científico era que continentes não se moviam – uma confiança no paradigma que se mostrou equivocada, exigindo uma mudança de visão. Este caso histórico demonstra como mesmo cientistas podem resistir a novas teorias corretas por acreditar firmemente no conhecimento atual.
Além desses, há muitos outros exemplos (da medicina, da biologia, etc.) que reforçam a necessidade de humildade epistêmica. A história mostra que o conhecimento científico evolui e que cada geração tende a considerar seu entendimento como o mais acertado – mas as gerações seguintes frequentemente identificam erros ou limitações nesse entendimento.
Conclusão
Em resumo, a tendência de enxergar as afirmações científicas mais recentes como as mais corretas pode ser analisada por vários conceitos filosóficos. O cientificismo e o dogmatismo científico alertam para os perigos de atribuir autoridade quase infalível à ciência atual, enquanto a falácia do presente (ou viés cronocêntrico) descreve o preconceito de valorizar excessivamente o agora em detrimento do passado. Por sua vez, argumentos como a meta-indução pessimista nos lembram, com base em exemplos históricos, que nenhuma teoria presente deve ser tratada como verdade definitiva, pois a ciência está em contínuo aperfeiçoamento. Exemplos históricos – da revolução copernicana à queda do flogisto, do éter e de tantas outras “certezas” científicas – oferecem uma lição de cautela: a ciência avança corrigindo a si mesma. Adotar uma perspectiva filosófica falibilista e historicamente informada ajuda a evitar tanto o triunfalismo ingênuo (“agora sabemos tudo”) quanto o ceticismo absoluto, equilibrando confiança no método científico com reconhecimento de suas revisões e limites.
Referências selecionadas:
- Karl Popper (1959). The Logic of Scientific Discovery. [Discussão do caráter provisório da ciência e crítica ao dogmatismo].
- Thomas Kuhn (1962). The Structure of Scientific Revolutions. [Introduz os conceitos de paradigma, ciência normal e revoluções científicas] (Parcial epistemologia - NEOPOSITIVISMO: CIRCULO DE VIENA Y EL EMPIRISMO LÓGICO Hace unos treinta - Studocu).
- Larry Laudan (1981). “A Confutation of Convergent Realism”. Philosophy of Science, 48(1), 19–49. [Apresenta a meta-indução pessimista com exemplos históricos de teorias abandonadas] () ().
- Jib Fowles (1974). “Chronocentrism”. Futures, 6(2), 142–151. [Discute o viés de considerar o presente superior ao passado] (Cronocentrismo – Wikipédia, a enciclopédia livre).
- Sorensen, Roy (2013). A Cabinet of Philosophical Curiosities. [Menciona o “cemitério” de explicações baseadas em flogisto e éter] ().
- Harrison, Peter (2015). The Territories of Science and Religion. [Refere-se à história da ciência como um cemitério de teorias que funcionaram mas foram substituídas] ().
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