A Rede Ocidental: A Presença Hospitalária na Suíça e a Sobrevivência da Ordem Após 1291
Parte I: A Ordem do Hospital – Da Caridade em Jerusalém ao Poder Pan-Europeu
1.1. Fundação e Missão Original: O Ethos da Caridade
As origens da Ordem de São João de Jerusalém, popularmente conhecida como Ordem dos Hospitalários, remontam não a um campo de batalha, mas a um ato de caridade. Por volta de 1048, ou talvez um pouco mais tarde, por volta de 1080, mercadores da próspera República Marítima de Amalfi, na Itália, financiaram a criação de um hospital em Jerusalém.
Sob a liderança do seu fundador, o irmão leigo Gerardo Tum, a instituição cresceu em proeminência, especialmente após a conquista de Jerusalém pelos cruzados em 1099.
Pie Postulatio Voluntatis.
Este fundamento puramente caritativo e médico dotou a Ordem de uma identidade dupla única que se revelaria uma vantagem estratégica fundamental para a sua longevidade. Ao contrário de ordens puramente militares, cuja existência estava intrinsecamente ligada à guerra santa, a missão humanitária dos Hospitalários conferiu-lhes uma "licença social para operar" que era perpétua e universalmente respeitada. Mesmo após a sua militarização, a função hospitalar nunca foi abandonada; permaneceu como um pilar da sua identidade.
raison d'être militar — a defesa da Terra Santa — foi eliminado com a queda de Acre em 1291, a Ordem pôde reverter para a sua missão original, que permanecia tão válida e necessária como sempre. Esta dualidade contrasta fortemente com os Cavaleiros Templários, cuja função primária era militar e financeira, tornando-os mais vulneráveis a acusações de obsolescência e a ataques políticos após 1291.
1.2. A Virada Militar: Necessidade e Adaptação
A transformação da Ordem de uma irmandade puramente caritativa para uma formidável ordem militar-religiosa não foi resultado de uma mudança ideológica abrupta, mas sim de uma evolução pragmática impulsionada pelas duras realidades da vida nos Estados Cruzados.
Sob a liderança do segundo Grão-Mestre, Raymond du Puy, por volta de 1120, a Ordem começou a dar os seus primeiros passos em direção à militarização.
A transição foi formalizada ao longo de várias décadas. Em 1136, o Rei Fulk de Jerusalém concedeu à Ordem o recém-construído castelo de Bethgibelin, encarregando-a da sua guarnição e manutenção, marcando o seu primeiro papel militar oficial.
Tuitio Fidei et Obsequium Pauperum (Defesa da Fé e Assistência aos Pobres).
1.3. A Arquitetura do Poder: A Rede de Comendas como Motor Econômico e Logístico
Manter hospitais, guarnecer castelos e colocar exércitos em campo no Levante era uma empresa imensamente dispendiosa.
Estas propriedades foram organizadas num sistema hierárquico altamente eficiente. A unidade de base era a comenda (ou bailia), um centro administrativo que geria um conjunto de ativos locais, como quintas, moinhos, minas e igrejas.
Langues (Línguas), divisões geográficas e linguísticas que cobriam toda a cristandade ocidental.
Este sistema pode ser visto como uma espécie de protocorporação multinacional. A sede no Levante (primeiro Jerusalém, depois Acre) funcionava como a "sede central", definindo a missão e a estratégia. As comendas europeias atuavam como "subsidiárias" regionais, cujo principal objetivo era gerar "lucros" (receitas) para serem remetidos para a sede.
Langues e Priorados garantia o controlo e a eficiência na extração de recursos.
Parte II: Os Hospitalários na Suíça: Análise da Presença Anterior a 1291
A noção de que os Hospitalários só se estabeleceram na Europa em força após a perda da Terra Santa é historicamente incorreta. A investigação documental e arqueológica demonstra inequivocamente que a Ordem estabeleceu uma rede robusta e estrategicamente importante no território da atual Suíça muito antes do ponto de viragem de 1291. Esta presença precoce não só responde à questão central deste estudo, mas também revela a profundidade da integração da Ordem na sociedade feudal europeia.
2.1. Mapeamento da Rede Suíça: Uma Presença Estratégica e Precoce
As comendas hospitalárias na Suíça faziam parte da Langue da Alemanha e, mais especificamente, do Bailiado da Alta Alemanha (Ballei Oberdeutschland).
Tabela 1: Comendas Hospitalárias na Suíça Fundadas Antes de 1291
Comenda | Data de Fundação (Aprox.) | Cantão Atual | Patronos/Doadores Notáveis | Fontes |
Hohenrain | c. 1175 | Lucerna | Nobreza local | |
Münchenbuchsee | 1180 | Berna | Cuno von Buhse | |
Bubikon | c. 1192 | Zurique | Condes de Toggenburg e Rapperswil | |
Thunstetten | c. 1192 | Berna | Consórcio de nobres locais | |
Basel | c. 1200 | Basileia-Cidade | Desconhecido | |
Rheinfelden | 1212 | Argóvia | Desconhecido | |
Friburgo | antes de 1229 | Friburgo | Doação da cidade (1259) | |
Tobel | 1226 | Turgóvia | Condes de Toggenburg | |
Salgesch | c. 1235 | Valais | Desconhecido | |
Reiden | c. 1284 | Lucerna | Desconhecido |
2.2. Estudos de Caso – Centros de Poder e Piedade
A análise de comendas específicas revela a natureza multifacetada da sua função e a sua profunda integração no tecido social, político e religioso da Suíça medieval.
2.2.1. A Doação de Cuno de Buhse: A Comenda de Münchenbuchsee (1180)
A fundação da comenda de Münchenbuchsee em 1180 é um exemplo paradigmático do patrocínio da alta nobreza. O barão Cuno de Buhse doou à Ordem a totalidade das suas terras, que incluíam as aldeias de Münchenbuchsee e Wankdorf, bem como valiosos vinhedos no Lago Biel.
2.2.2. Alianças Nobiliárquicas: A Comenda de Bubikon (c. 1192)
A Ritterhaus Bubikon ilustra como as doações à Ordem podiam servir a propósitos políticos pragmáticos, para além da piedade. A comenda foi fundada através de uma doação conjunta das poderosas famílias dos Condes de Toggenburg e Rapperswil.
Burgrecht) das cidades vizinhas, o que lhe conferia um estatuto especial.
2.2.3. Vida Urbana e Deveres Cívicos: A Comenda de Friburgo (ante 1229)
A comenda de Friburgo demonstra a integração da Ordem na vida urbana. Estabelecida dentro da cidade, a sua existência estava ligada a obrigações cívicas. Uma doação crucial da cidade em 1259 obrigava contratualmente a Ordem a construir e manter uma igreja, um cemitério e um hospício.
O estabelecimento destas comendas era, portanto, um processo ativo de integração sociopolítica. Para os senhores locais, doar terras a uma ordem poderosa, isenta de impostos e com ligações internacionais como os Hospitalários, servia múltiplos fins estratégicos. Era uma forma de resolver disputas com rivais (como em Bubikon), de externalizar serviços sociais essenciais (cuidados pastorais e hospitalares em Münchenbuchsee e Friburgo), de instalar um inquilino leal e militarmente capaz nas suas terras e, claro, de obter mérito espiritual. As comendas tornaram-se assim partes integrantes da paisagem feudal, funcionando como senhorios estáveis e produtivos que reforçavam o poder dos seus patronos, numa relação de simbiose clara: a Ordem recebia terras e receitas; a nobreza recebia benefícios espirituais, estabilidade política e os serviços administrativos de uma entidade internacional altamente organizada.
Parte III: Contexto e Conexões – Ordens, Peregrinos e o Ponto de Inflexão de 1291
A presença dos Hospitalários na Suíça do século XIII não pode ser entendida isoladamente. Existia dentro de uma paisagem complexa de ordens militares concorrentes, estava intrinsecamente ligada às grandes artérias de peregrinação que atravessavam a Europa e foi fundamentalmente redefinida pelo evento cataclísmico da queda de Acre em 1291.
3.1. Paisagem das Ordens Militares na Suíça: Competição e Coexistência
Os Hospitalários não eram a única ordem militar a procurar patrocínio e a estabelecer-se na região. Os Cavaleiros Templários, embora com uma presença aparentemente menor, também mantinham comendas na Suíça, nomeadamente em Genebra e La Chaux (Cossonay).
Embora estas três grandes ordens competissem por doações e influência, elas ocupavam nichos estratégicos ligeiramente diferentes. Os Templários eram guerreiros de elite e os pioneiros de um sistema bancário internacional. Os Cavaleiros Teutónicos concentravam cada vez mais os seus esforços na sua cruzada báltica e na administração do seu estado na Prússia.
3.2. As Artérias da Fé: Rotas de Peregrinação e o Papel Hospitalário
A Suíça medieval era uma encruzilhada vital para o movimento de pessoas mais significativo da época: a peregrinação. As principais rotas europeias atravessavam o seu território montanhoso. A Via Francigena, que ligava Cantuária a Roma, cruzava o passo do Grande São Bernardo.
Jakobsweg) tinha inúmeras variantes que atravessavam a Suíça, ligando a Alemanha e a Áustria a França.
A localização das comendas hospitalárias não era acidental; estavam estrategicamente posicionadas ao longo ou perto destas artérias de fé. Locais como Friburgo e Münchenbuchsee serviam os peregrinos que viajavam pelos ramos do Jakobsweg. A função explícita de fornecer hospitalidade (hospitium) significava que estas comendas eram infraestruturas essenciais para este movimento massivo de pessoas.
3.3. O Fim de uma Era: A Queda de Acre e a Reorientação Estratégica
O cerco e a queda de Acre em 1291 marcaram o fim dos Estados Cruzados no Levante.
Este momento de crise revelou a importância estratégica da rede europeia que a Ordem tinha construído ao longo de quase dois séculos. A queda de Acre não forçou os Hospitalários a criar uma base europeia; forçou-os a reutilizar a que já possuíam, uma estrutura altamente desenvolvida e lucrativa. A rede de comendas na Suíça e noutros locais, que durante duzentos anos funcionou como um sistema de apoio logístico para a guerra no Oriente, tornou-se subitamente a principal fonte de poder da Ordem e a base para a sua reinvenção. Para financiar a ambiciosa conquista de um novo território soberano, como Rodes (1306-1310), era necessário um capital imenso, que só podia provir das suas propriedades europeias.
Conclusão: A Rede Ocidental como Fundamento da Resiliência Hospitalária
A análise histórica confirma, sem margem para dúvida, a existência de uma presença hospitalária significativa e bem documentada em regiões como a Suíça muito antes de 1291. As comendas de Hohenrain (c. 1175), Münchenbuchsee (1180) e Bubikon (c. 1192) são testemunhos inequívocos de uma implantação precoce, profundamente integrada na sociedade feudal local através de uma relação simbiótica com a nobreza. Estas instituições não eram meros postos avançados, mas centros multifuncionais de poder económico, serviço social e piedade, estrategicamente localizados ao longo das vitais rotas de peregrinação que atravessavam a Europa.
A questão fundamental deste estudo aponta para a verdade central da história dos Hospitalários: a rede ocidental, estabelecida antes de 1291, foi o fator decisivo para a capacidade única da Ordem de sobreviver ao cataclismo da perda da Terra Santa. Enquanto outras ordens, como os Templários, cuja missão era mais estritamente militar e financeira, enfrentaram uma crise existencial que culminou na sua dissolução, os Hospitalários conseguiram pivotar. A sua infraestrutura europeia robusta, autossuficiente e multifuncional não era um plano de recurso; era o alicerce que lhes permitiu fazer a transição de um exército terrestre a defender um reino perdido para uma potência naval soberana que continuaria a moldar a história do Mediterrâneo durante séculos a partir das suas novas bases em Rodes e, mais tarde, em Malta.
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