terça-feira, 9 de junho de 2015

O livre-arbítrio não existe, dizem neurocientistas


O livre-arbítrio não existe, dizem neurocientistas

Novas pesquisas sugerem que o que cremos ser escolhas conscientes são decisões automáticas tomadas pelo cérebro. O homem não seria, assim, mais do que um computador de carne

Por: Aretha Yarak - Atualizado em 


cérebro
O todo-poderoso cérebro: neurocientistas defendem a tese de que o órgão toma as decisões antes mesmo de pensarmos nelas(Thinkstock/VEJA)
Saber se os homens são capazes de fazer escolhas e eleger o seu caminho, ou se não passam de joguetes de alguma força misteriosa, tem sido há séculos um dos grandes temas da filosofia e da religião. De certa maneira, a primeira tese saiu vencedora no mundo moderno. Vivemos no mundo de Cássio, um dos personagens da tragédia Júlio César, de William Shakespeare. No começo da peça, o nobre Brutus teme que o povo aceite César como rei, o que poria fim à República, o regime adotado por Roma desde tempos imemoriais. Ele hesita, não sabe o que fazer. É quando Cássio procura induzi-lo à ação. Seu discurso contém a mais célebre defesa do livre-arbítrio encontrada nos livros. "Há momentos", diz ele, "em que os homens são donos de seu fado. Não é dos astros, caro Brutus, a culpa, mas de nós mesmos, se nos rebaixamos ao papel de instrumentos."
Como nem sempre é o caso com os temas filosóficos, a crença no livre-arbítrio tem reflexos bastante concretos no "mundo real". A maneira como a lei atribui responsabilidade às pessoas ou pune criminosos, por exemplo, depende da ideia de que somos livres para tomar decisões, e portanto devemos responder por elas. Mas a vitória do livre-arbítrio nunca foi completa. Nunca deixaram de existir aqueles que acreditam que o destino está escrito nas estrelas, é ditado por Deus, pelos instintos, ou pelos condicionamentos sociais. Recentemente, o exército dos deterministas - para usar uma palavra que os engloba - ganhou um reforço de peso: o dos neurocientistas. Eles são enfáticos: o livre-arbítrio não é mais que uma ilusão. E dizem isso munidos de um vasto arsenal de dados, colhidos por meio de testes que monitoram o cérebro em tempo real. O que muda se de fato for assim?
Mais rápido que o pensamento - Experimentos que vêm sendo realizados por cientistas há anos conseguiram mapear a existência de atividade cerebral antes que a pessoa tivesse consciência do que iria fazer. Ou seja, o cérebro já sabia o que seria feito, mas a pessoa ainda não. Seríamos como computadores de carne - e nossa consciência, não mais do que a tela do monitor. Um dos primeiros trabalhos que ajudaram a colocar o livre-arbítrio em suspensão foi realizado em 2008. O psicólogo Benjamin Libet, em um experimento hoje considerado clássico, mostrou que uma região do cérebro envolvida em coordenar a atividade motora apresentava atividade elétrica uma fração de segundos antes dos voluntários tomarem uma decisão - no caso, apertar um botão. Estudos posteriores corroboraram a tese de Libet, de que a atividade cerebral precede e determina uma escolha consciente.
Um deles foi publicado no periódico científico PLoS ONE, em junho de 2011, com resultados impactantes. O pesquisador Stefan Bode e sua equipe realizaram exames de ressonância magnética em 12 voluntários, todos entre 22 e 29 anos de idade. Assim como o experimento de Libet, a tarefa era apertar um botão, com a mão direita ou a esquerda. Resultado: os pesquisadores conseguiram prever qual seria a decisão tomada pelos voluntários sete segundos antes d eeles tomarem consciência do que faziam.

Biblioteca
Who's in Charge? Free Will and the Science of the Brain

Capa livro Gazzaniga
Reprodução(Reprodução/VEJA)
O pai da neurociência cognitiva apresenta argumentos contra o senso comum de que somos guiados pelo livre-arbítrio. Para Gazzaniga, a mente é gerada pelo cérebro, que guiado pelo determinismo biológico define quem nós somos.
Autor: Michael S. Gazzaniga
Editora: Ecco

Nesses sete segundos entre o ato e a consciência dele, foi possível registrar atividade elétrica no córtex polo-frontal - área ainda pouco conhecida pela medicina, relacionada ao manejo de múltiplas tarefas. Em seguida, a atividade elétrica foi direcionada para o córtex parietal, uma região de integração sensorial. A pesquisa não foi a primeira a usar ressonância magnética para investigar o livre-arbítrio no cérebro. Nunca, no entanto, havia sido encontrada uma diferença tão grande entre a atividade cerebral e o ato consciente.
Patrick Haggard, pesquisador do Instituto de Neurociência Cognitiva e do Departamento de Psicologia da Universidade College London, na Inglaterra, cita experimentos que comprovam, segundo ele, que o sentimento de querer algo acontece após (e não antes) de uma atividade elétrica no cérebro.
"Neurocirurgiões usaram um eletrodo para estimular um determinado local da área motora do cérebro. Como consequência, o paciente manifestou em seguida o desejo de levantar a mão", disse Haggard em entrevista ao site de VEJA. "Isso evidencia que já existe atividade cerebral antes de qualquer decisão que a gente tome, seja ela motora ou sentimental."
O psicólogo Jonathan Haidt, da Universidade da Vírginia, nos Estados Unidos, demonstrou que grande parte dos julgamentos morais também é feito de maneira automática, com influência direta de fortes sentimentos associados a certo e errado. Não há racionalização. Segundo o pesquisador, certas escolhas morais - como a de rejeitar o incesto - foram selecionadas pela evolução, porque funcionou em diversas situações para evitar descendentes menos saudáveis pela expressão de genes recessivos. É algo inato e, por isso, comum e universal a todas as culturas. Para a neurociência, é mais um dos exemplos de como o cérebro traz à tona algo que aprendeu para conservar a espécie.
A mente como produto do cérebro - Como o cérebro já se encarregou de decidir o que fazer - e o ato está feito -, é preciso contextualizar a situação. É aí que entra a nossa consciência. Ela também é um produto da atividade cerebral, que surge para dar coerência às nossas ações no mundo. O cérebro toma a decisão por conta própria e ainda convence seu 'dono' que o responsável foi ele.
Em outras palavras: quando você para, pensa e toma decisões pontuais, tem a sensação de que um eu consciente e racional, separado do cérebro, segura as rédeas de sua vida. Mas para cientistas como Michael Gazzaniga, coordenador do Centro para o Estudo da Mente da Universidade da Califórnia e um dos maiores expoentes da neurociência na atualidade, não existe essa diferenciação. Segundo ele, somos um só: o que é cérebro também é mente. A sensação de que existe um eu, que habita e controla o corpo, é apenas o resultado da atividade cerebral que nos engana. "Não há nenhum fantasma na máquina, nenhum material secreto que é você", diz Gazzaniga, que, em seu mais recente livro, Who's in Charge - Free Will and the Science of the Brain (Quem está no comando - livre-arbítrio e a ciência do cérebro, sem edição em português), esmiúça a mecânica cerebral das decisões. (continue lendo a reportagem)
Michio Kaku, um dos principais físicos da atualidade, explica o livre-arbítrio do ponto de vista da física:
Segundo Gazzaniga, o cérebro humano fabula o tempo todo. A invenção de pequenas histórias para explicar nossas escolhas seria uma maneira sagaz de estruturar nossa experiência cotidiana. Essa estrutura narrativa, segundo Patrick Haggard, tem um significado importante na evolução humana.
"Criar histórias sobre as nossas ações pode ser útil para quando nos depararmos com situações similares no futuro. É assim que iremos decidir como agir, relembrando resultados anteriores", diz. Ou seja, funcionamos na base do acerto e do erro, e da cópia do comportamento de pessoas próximas - principalmente nossos familiares. "Por isso a educação das crianças é tão importante. É um momento em que o cérebro absorve uma grande carga de informações e está sendo moldado, criando parâmetros para saber como se portar, como viver em sociedade." (continue lendo a reportagem)


Emoção x Razão
Em seu recente livro Thinking, Fast and Slow (Pensando, rápido e devagar, com edição em português prevista para o segundo semestre de 2012), o ganhador do prêmio Nobel de economia de 2002, Daniel Kahneman, defende a tese de que grande parte das nossas decisões são puramente emocionais. Mesmo quando um pessoa acredita que está racionalizando, e que faz um determinado investimento baseado em dados, está, na verdade, agindo pela emoção.
Isso explica por que as pessoas criam empatia por um político apenas pela sua fisionomia ou porque professores tendem a dar melhores notas a alunos que já se destacam. Kahneman ainda discorre sobre a substituição do problema, mecanismo pelo qual criamos opiniões intuitivas sobre assuntos complexos. Quando alguém lhe pergunta, por exemplo: "Quanto você doaria para salvar uma espécie ameaçada?", a pergunta que você responde é "Quão emotivo eu fico quando penso em golfinhos ameaçados?"
Logo abaixo estão dois testes propostos por Kahneman. Segundo a tese do Nobel, a tendência é que você responda às perguntas motivado pela intuição e pelos estereótipos - deixando de lado a pura racionalidade.
1) Linda é uma mulher de 31 anos, solteira, e muito inteligente. Ela é graduada em filosofia. Enquanto estudante, ela se envolveu profundamente com assuntos como discriminação e injustiça social, e participou de demonstrações antinucleares. Qual a afirmativa correta?
a) Linda é caixa de banco
b) Linda é uma caixa de banco e participa ativamente do movimento feminista
Solução: Nas respostas de todos os grupos avaliados por Kahenaman, houve um consenso: quase 90% dos participantes colocaram a opção caixa de banco e feminista com altos índices de probabilidade. Mas a probabilidade de que Linda seja uma caixa feminista é menor do que a de ser apenas uma caixa de banco. Aqui, fica estabelecido um conflito entre a intuição de representatividade e a lógica de probabilidade. Pela lógica (e não a intuição e o estereótipo), Linda seria apenas uma caixa de banco.
2) Quantos encontros amorosos você teve mês passado?
a) 1 - 3
b) 3 - 5
c) 0
Numa escala de 1 a 5, o quão feliz você está se sentindo esses dias (sendo 5 o mais feliz)?
a) 1
b) 2
c) 3
d) 4
e) 5
Solução: Independente de como foi sua resposta, é bastante provável que a resposta à segunda pergunta esteja diretamente relacionada com a primeira. Se você teve poucos encontros, vai se sentir menos feliz - e vice-versa. Entretanto, quando as mesmas perguntas são feitas em ordens trocadas, a quantidade de encontros não influencia o quão feliz a pessoa se acha. Quando deparado com uma pergunta objetiva (quanto encontros teve no mês), seguida por outra subjetiva (felicidade), a resposta da primeira acaba por influenciar a segunda. Essa projeção é chamada de substituição.

Nenhum comentário:

Postar um comentário